Enquanto Dioniso era varrido pelas tochas
incendiárias dos cristãos recém convertidos no fim do período antigo e seu culto
era velado pela iniciante Igreja Católica, em seu nascedouro repressor, no Oriente, a poética se permitia ser lasciva e profana e ao mesmo tempo
sagrada. O interdito possuía significado
similar ao crente chinês ou hindu, mas apesar da conceituação filosófica diferir em alguns pontos, na existência do individuo não havia cisão entre o que a
arte sagrada e a arte profana significava, pois essa divisão é característica
exclusiva da cultura do Ocidente. O Oriental vive sua fé em tempo integral.
Quando pela primeira vez tive oportunidade de conhecer o Coliseu em Roma percebi uma inscrição que
dizia ao espectador cristão que ao beijar a cruz que figurava na laje ao sair
os pecados decorrentes de presenciar o horrendo espetáculo com prazer seriam
absolvidos pelo ato de contrição. Temos então a imagem de um individuo dividido
entre a fé cristã e sua cultura ancestral que apreciava os morticínios da arena
com igual desenvoltura. Pela manhã assistiam a missa e depois corriam até o
espetáculo para ver gladiadores e feras esvaídos em brutal carnificina. O
Império já agonizante vivia seus tempos de decadência e divisão que iriam
lançar as bases para o obscurantismo do fundamentalismo religioso e a
desagregação final de seu território.
Essa herança da divisão entre sagrado e profano permeia a poética
e estabelece fronteiras bem definidas na criação músical, na poesia, nos
audiovisuais e possivelmente no conceito em relação a própria poética, como
registro parcial de uma só manifestação criativa pseudo erudita. A sobriedade
passa a ser atributo dessa poética, como forma criativa, negando toda uma
tradição não erudita que sobrevive nas periferias, que possui vida própria,
presente nos cantos inebriados dos bardos mal pagos que não possuem permissão
oficial nem frequentam a mídia. Como exemplo recente podemos destacar o Jazz, o
Rock and Roll, o Blues nos Estados Unidos, todos fenômenos criativos profanos
nascidos nos bares e tavernas de ex escravos que tiveram por anos interdito seu
acesso aos grandes salões e forjaram
esses sons que foram decantados nos coros das Igrejas Protestantes relegadas
aos negros pelos brancos que proibiram os cultos nativos de seus servos,
restringiram seus espaços, antes e depois da formalização do status de libertos
em uma sociedade violentamente segregada.
Mas o transe dionisíaco não pode ser contido por leis e
normas. Ele faz parte do pathos religioso da humanidade. Sua poética não
sucumbe aos mandamentos humanos, ela se traveste, foge dos templos, se esconde
em guetos, busca os homens de todas as épocas e crenças e portanto sua
liberdade de ação criativa define o nível de salubridade de uma determinada
civilização ou sociedade.
No Oriente Próximo, com a expansão do islamismo em plena
Idade Média, dentro da sua fronteira é onde vamos flagrar a explosão do processo
criativo literário. A poética irá expandir-se através dos cantos cheios de
menções ao Profeta e seu livro sagrado, das criações literárias com temas de
religiosidade apurada e volúpia sexual desconhecida para os padrões da
sociedade feudal analfabeta europeia da época. Padrões estéticos cujas obras
traduzidas ainda iriam causar escândalo na sociedade vitoriana do séc. XIX
muitos séculos depois do apogeu da expansão islâmica.
“As Mil e Uma Noites”, obra de autor desconhecido e
“Rubaiyat” de Omar Khayam traduzem esse enlevamento profano misturado com as
coisas da religião e das crenças do povo comum que dão sabor especial aos
cantos desses versos universais. Até
hoje os estudiosos debatem e divergem com a análise da obra do persa Omar
Khayam . Alguns o consideram um cínico epicurista amante das mulheres e do
vinho, seus poemas como hinos às alegrias da vida, outros interpretam
alegoricamente os “Rubayats” observando por trás de suas quadras uma exaltação
da divindade, uma obra mística de cunho esotérico.
Imerso nas coisas do sufismo, de “sufi” que significa
sabedoria, contemporâneo do Velho da Montanha, o homem que criou a seita dos
Assassinos que buscava reimplantar o culto à Hussein e libertar os xiitas do
jugo Seldjúcida Sunita, e portanto vivendo uma época conturbada, Khayam com certeza
era admirador do neoplatonismo que embebeu toda a sua poética, como perpétua
exaltação religiosa, constatação e
aceitação da irremediável fragilidade humana, submissão extremamente dócil à
Vontade do Divino Criador.
O panteísmo sufista que vai encontrar semelhanças inegáveis
ao taoísmo chinês e ao hinduísmo, ainda mais antigo, que nasceu às margens do
Bramaputra e do Ganges e irradiou sua sabedoria para todo mundo civilizado
representa natural influência filosófica para os persas que habitam o meio
caminho da rota da seda nas portas da
Ásia. Até mesmo no sagrado Alcorão podem ser encontradas referências ao Uno
como única manifestação real do Cosmo e sua Criação simples emanação da sua
Existência Divina. Portanto, além dessa crença panteística, tinham os sufis a
certeza de que toda a existência, todo o pensamento e toda a ação eram de
caráter essencialmente divinos. Desaparecem com isso as noções antitéticas de
bem e mal, de vício e virtude, uma vez que tanto uns como outros são revelações
da Vontade Divina.
Como centro basilar dessa doutrina, de grande conteúdo
poético, o amor é a base da Criação do Universo, sentimento aglutinador de
Deus. Pelo amor explicam a origem das “Dez Mil Coisas”. Antes da Criação, Deus
amava-se em absoluta unidade e pelo amor revelava-se a si próprio. Chegando ao
limite desse amor sem dualidade, tirou do nada uma imagem de si próprio,
dotando-a dos seus atributos.
As religiões oficiais de origem semítica não aceitaram esses
ousados pensamentos filosóficos, pois pretendiam regrar o comportamento de seus
prosélitos através de rituais exotéricos e mistérios, incentivar a abstinência
e ao temor à Deus, sendo assim a liberdade sexual e o prazer não fazem parte
dos dogmas aceitos pelos seus sacerdotes que preferem pregar contra o pecado da carne em absoluta negação
da vida. Mas na época das Cruzadas muitos cavaleiros escutaram as preleções dos
sufis e levaram escondidos em seus alforjes suas heresias para a Europa que
depois deram origem às sociedades secretas de Maçons e Rosacruzes que seriam perseguidas
pela Igreja oficial lá.
A doutrina sufi ensina a atingir, pelo desprezo das coisas
terrenas, e pela meditação constante das coisas celestes em contato direto com
a Divindade através das exegeses de corpo e alma, como fazem os hindus. Para
chegar a esse grau de perfeição os sufis devem passar por quatro níveis de
entendimento: Ao primeiro chamam
“Direção do Corpo” que predica ao discípulo à submissão das leis estabelecidas
e aos preceitos exteriores da religião devendo levar uma conduta exemplar. O
segundo nível denominam “Caminho” indica que o neófito já pode dispensar as
formas exteriores do culto dominante por já ter adquirido o conhecimento da
Natureza Divina. O terceiro, denominado “Ciência”, o sufi é então considerado
inspirado. O quarto grau, a “Verdade”, indica que o mestre sufi atingiu sua
conexão plena com Deus.
Omar Kayham, como perfeito sufi, responsabiliza o Criador
pelas perfeições como também pelos desvios de suas criaturas, tema presente em
sua poética. Ele desacredita das liturgias, pois Deus está dentro de nós e em
toda a parte, tradição ancestral esotérica que permeia as religiões orientais e
a cabala. O verdadeiro templo é o individuo que interioriza a divindade e vive
um êxtase de exaltação mística em comunhão com a divindade.
Assim seguindo a tradição Oriental seu ideal religioso se imiscui com o profano.
A embriaguez do vinho se assemelha aos rituais de Dioniso, como para tantos
outros autores, fonte de inspiração divina, coisa sagrada, anulação da
identidade, o aniquilamento da personalidade do falso “eu” para a contemplação
do “Eu Superior” ou divino. Para atingir
esse estágio chega-se ao “Sukr” ou
embriaguez, segundo a tradução literal.
Desde tempos imemoriais os homens recorrem às substancias
alucinógenas para ampliar a percepção e atingir a exaltação mística. Todos os
povos do planeta possuem suas ervas sagradas para facilitar o contato com a
divindade. O Rig Veda, texto poético hindu, é consagrado ao culto do soma, a
bebida sagrada cuja fórmula se perdeu, mas que alguns estudiosos atualmente
acreditam tratar-se de cogumelos (Amanita
Muscaria) e a Pítia de Delfos entrava em transe embriagada pelos gases
vulcânicos que emanavam de uma rachadura que atravessava o templo e profetizava
em uma algaravia que só os sacerdotes entendiam e decifravam. Muitos outros exemplos similares podem ser
invocados. Não chamam os germanos e saxões “spirituosen” aos licores e vinhos
que levam ao inebriamento em alusão as coisas do espírito?
A embriaguez, a música e a dança que levam ao transe é a
raiz da poética enquanto inspiração dos deuses, ponto de ligação para o
crescimento espiritual do iniciado, mas também é uma faca de dois gumes para o
seguidor, pois a mente despreparada pode se perder nos seus meandros
labirínticos e a mente doente pode escapar para uma viagem sem volta em direção
ao delírio ininteligível se desprovido da devida preparação espiritual. Na
atualidade a sociedade de consumo torna o individuo dissociado de sua
espiritualidade e o homem comum acredita que só o seu lado externo é a projeção
da realidade na ilusão das parcialidades induzindo-o para um caminho de prazer
sensorial descontrolado, um beco sem saída espiritual e por isso se perde a
evolução psíquica tornando o perigo da escravidão do vício das drogas um drama
sempre real. Essa é uma das consequências mais graves da separação entre o
sagrado e o profano na sociedade Ocidental. A perda inestimável do sentido de
ritual.
Para se alcançar o êxtase, no sentido de samadhi,
iluminação, basta uma palavra, um koan enigmático, uma meditação com a técnica
correta que só pode ser alcançada com o devido conhecimento e perseverança. O
verso certo quando possui a correta sonoridade pode trazer o percebimento
instantâneo para o seguidor que pretende empreender o Caminho.
Os versos mesmo tendo sentido erótico podem estarem associados a uma
intenção mística velada, já que a natureza humana é uma projeção da natureza
divina e o prazer é dádiva da divindade.
A poesia sufi é a forma mais elevada da poética persa.
Poesia de intenção mística com profunda temática sensual que exalta o vinho, a
beleza, e a luz como dádivas divinas. Khayam com certeza é um dos maiores
representantes dessa tendência onde o Islã é reconduzido ao seu trilho de
doutrina esclarecida onde a ciência e a sabedoria teve seu momento de expansão
reconhecido até mesmo pelos seus piores inimigos.
Diferente dos versos histéricos das freiras confinadas em
conventos medievais, os poemas iluminados do Oriente possuem uma sensualidade
própria, liberta das patologias da mente enclausurada e contida pelos
interditos da carne.
Noite, silêncio, folhas imóveis;
imóvel o meu pensamento.
Onde estás, tu que me ofereceste a
taça?
Hoje caiu a primeira pétala.
Eu sei, uma rosa não murcha
perto de quem tu agora sacias a sede;
mas sentes a falta do prazer que eu
soube te dar,
e que te fez desfalecer.
Acorda... e olha como o sol em seu
regresso
vai apagando as estrelas do campo da
noite;
do mesmo modo ele vai desvanecer
as grandes luzes da soberba torre do
Sultão.
Omar Khayyam
Nenhum comentário:
Postar um comentário