terça-feira, 19 de março de 2013

Oriente – A Embriaguez Concedida



Enquanto Dioniso era varrido pelas tochas incendiárias dos cristãos recém convertidos no fim do período antigo e seu culto era velado pela iniciante Igreja Católica, em seu nascedouro repressor, no Oriente, a poética se permitia ser lasciva e profana e ao mesmo tempo sagrada.  O interdito possuía significado similar ao crente chinês ou hindu, mas apesar da conceituação filosófica diferir em alguns pontos, na existência do individuo não havia cisão entre o que a arte sagrada e a arte profana significava, pois essa divisão é característica exclusiva da cultura do Ocidente. O Oriental vive sua fé em tempo integral.

Quando pela primeira vez tive oportunidade de conhecer  o Coliseu em Roma percebi uma inscrição que dizia ao espectador cristão que ao beijar a cruz que figurava na laje ao sair os pecados decorrentes de presenciar o horrendo espetáculo com prazer seriam absolvidos pelo ato de contrição. Temos então a imagem de um individuo dividido entre a fé cristã e sua cultura ancestral que apreciava os morticínios da arena com igual desenvoltura. Pela manhã assistiam a missa e depois corriam até o espetáculo para ver gladiadores e feras esvaídos em brutal carnificina. O Império já agonizante vivia seus tempos de decadência e divisão que iriam lançar as bases para o obscurantismo do fundamentalismo religioso e a desagregação final de seu território.

Essa herança da divisão entre sagrado e profano permeia a poética e estabelece fronteiras bem definidas na criação músical, na poesia, nos audiovisuais e possivelmente no conceito em relação a própria poética, como registro parcial de uma só manifestação criativa pseudo erudita. A sobriedade passa a ser atributo dessa poética, como forma criativa, negando toda uma tradição não erudita que sobrevive nas periferias, que possui vida própria, presente nos cantos inebriados dos bardos mal pagos que não possuem permissão oficial nem frequentam a mídia. Como exemplo recente podemos destacar o Jazz, o Rock and Roll, o Blues nos Estados Unidos, todos fenômenos criativos profanos nascidos nos bares e tavernas de ex escravos que tiveram por anos interdito seu acesso  aos grandes salões e forjaram esses sons que foram decantados nos coros das Igrejas Protestantes relegadas aos negros pelos brancos que proibiram os cultos nativos de seus servos, restringiram seus espaços, antes e depois da formalização do status de libertos em uma sociedade violentamente segregada.

Mas o transe dionisíaco não pode ser contido por leis e normas. Ele faz parte do pathos religioso da humanidade. Sua poética não sucumbe aos mandamentos humanos, ela se traveste, foge dos templos, se esconde em guetos, busca os homens de todas as épocas e crenças e portanto sua liberdade de ação criativa define o nível de salubridade de uma determinada civilização ou sociedade.

No Oriente Próximo, com a expansão do islamismo em plena Idade Média, dentro da sua fronteira é onde vamos flagrar a explosão do processo criativo literário. A poética irá expandir-se através dos cantos cheios de menções ao Profeta e seu livro sagrado, das criações literárias com temas de religiosidade apurada e volúpia sexual desconhecida para os padrões da sociedade feudal analfabeta europeia da época. Padrões estéticos cujas obras traduzidas ainda iriam causar escândalo na sociedade vitoriana do séc. XIX muitos séculos depois do apogeu da expansão islâmica.

“As Mil e Uma Noites”, obra de autor desconhecido e “Rubaiyat” de Omar Khayam traduzem esse enlevamento profano misturado com as coisas da religião e das crenças do povo comum que dão sabor especial aos cantos desses versos universais.  Até hoje os estudiosos debatem e divergem com a análise da obra do persa Omar Khayam . Alguns o consideram um cínico epicurista amante das mulheres e do vinho, seus poemas como hinos às alegrias da vida, outros interpretam alegoricamente os “Rubayats” observando por trás de suas quadras uma exaltação da divindade, uma obra mística de cunho esotérico.

Imerso nas coisas do sufismo, de “sufi” que significa sabedoria, contemporâneo do Velho da Montanha, o homem que criou a seita dos Assassinos que buscava reimplantar o culto à Hussein e libertar os xiitas do jugo Seldjúcida Sunita, e portanto vivendo uma época conturbada, Khayam com certeza era admirador do neoplatonismo que embebeu toda a sua poética, como perpétua exaltação religiosa,  constatação e aceitação da irremediável fragilidade humana, submissão extremamente dócil à Vontade do Divino Criador.

O panteísmo sufista que vai encontrar semelhanças inegáveis ao taoísmo chinês e ao hinduísmo, ainda mais antigo, que nasceu às margens do Bramaputra e do Ganges e irradiou sua sabedoria para todo mundo civilizado representa natural influência filosófica para os persas que habitam o meio caminho  da rota da seda nas portas da Ásia. Até mesmo no sagrado Alcorão podem ser encontradas referências ao Uno como única manifestação real do Cosmo e sua Criação simples emanação da sua Existência Divina. Portanto, além dessa crença panteística, tinham os sufis a certeza de que toda a existência, todo o pensamento e toda a ação eram de caráter essencialmente divinos. Desaparecem com isso as noções antitéticas de bem e mal, de vício e virtude, uma vez que tanto uns como outros são revelações da Vontade Divina.

Como centro basilar dessa doutrina, de grande conteúdo poético, o amor é a base da Criação do Universo, sentimento aglutinador de Deus. Pelo amor explicam a origem das “Dez Mil Coisas”. Antes da Criação, Deus amava-se em absoluta unidade e pelo amor revelava-se a si próprio. Chegando ao limite desse amor sem dualidade, tirou do nada uma imagem de si próprio, dotando-a dos seus atributos.
   
As religiões oficiais de origem semítica não aceitaram esses ousados pensamentos filosóficos, pois pretendiam regrar o comportamento de seus prosélitos através de rituais exotéricos e mistérios, incentivar a abstinência e ao temor à Deus, sendo assim a liberdade sexual e o prazer não fazem parte dos dogmas aceitos pelos seus sacerdotes que preferem pregar  contra o pecado da carne em absoluta negação da vida. Mas na época das Cruzadas muitos cavaleiros escutaram as preleções dos sufis e levaram escondidos em seus alforjes suas heresias para a Europa que depois deram origem às sociedades secretas de Maçons e Rosacruzes que seriam perseguidas pela Igreja oficial lá.

A doutrina sufi ensina a atingir, pelo desprezo das coisas terrenas, e pela meditação constante das coisas celestes em contato direto com a Divindade através das exegeses de corpo e alma, como fazem os hindus. Para chegar a esse grau de perfeição os sufis devem passar por quatro níveis de entendimento:  Ao primeiro chamam “Direção do Corpo” que predica ao discípulo à submissão das leis estabelecidas e aos preceitos exteriores da religião devendo levar uma conduta exemplar. O segundo nível denominam “Caminho” indica que o neófito já pode dispensar as formas exteriores do culto dominante por já ter adquirido o conhecimento da Natureza Divina. O terceiro, denominado “Ciência”, o sufi é então considerado inspirado. O quarto grau, a “Verdade”, indica que o mestre sufi atingiu sua conexão plena com Deus.

Omar Kayham, como perfeito sufi, responsabiliza o Criador pelas perfeições como também pelos desvios de suas criaturas, tema presente em sua poética. Ele desacredita das liturgias, pois Deus está dentro de nós e em toda a parte, tradição ancestral esotérica que permeia as religiões orientais e a cabala. O verdadeiro templo é o individuo que interioriza a divindade e vive um êxtase de exaltação mística em comunhão com a divindade.

Assim seguindo a tradição Oriental  seu ideal religioso se imiscui com o profano. A embriaguez do vinho se assemelha aos rituais de Dioniso, como para tantos outros autores, fonte de inspiração divina, coisa sagrada, anulação da identidade, o aniquilamento da personalidade do falso “eu” para a contemplação do “Eu Superior” ou divino.  Para atingir esse estágio  chega-se ao “Sukr” ou embriaguez, segundo a tradução literal.

Desde tempos imemoriais os homens recorrem às substancias alucinógenas para ampliar a percepção e atingir a exaltação mística. Todos os povos do planeta possuem suas ervas sagradas para facilitar o contato com a divindade. O Rig Veda, texto poético hindu, é consagrado ao culto do soma, a bebida sagrada cuja fórmula se perdeu, mas que alguns estudiosos atualmente acreditam tratar-se de cogumelos (Amanita Muscaria) e a Pítia de Delfos entrava em transe embriagada pelos gases vulcânicos que emanavam de uma rachadura que atravessava o templo e profetizava em uma algaravia que só os sacerdotes entendiam e decifravam.  Muitos outros exemplos similares podem ser invocados. Não chamam os germanos e saxões “spirituosen” aos licores e vinhos que levam ao inebriamento em alusão as coisas do espírito?

A embriaguez, a música e a dança que levam ao transe é a raiz da poética enquanto inspiração dos deuses, ponto de ligação para o crescimento espiritual do iniciado, mas também é uma faca de dois gumes para o seguidor, pois a mente despreparada pode se perder nos seus meandros labirínticos e a mente doente pode escapar para uma viagem sem volta em direção ao delírio ininteligível se desprovido da devida preparação espiritual. Na atualidade a sociedade de consumo torna o individuo dissociado de sua espiritualidade e o homem comum acredita que só o seu lado externo é a projeção da realidade na ilusão das parcialidades induzindo-o para um caminho de prazer sensorial descontrolado, um beco sem saída espiritual e por isso se perde a evolução psíquica tornando o perigo da escravidão do vício das drogas um drama sempre real. Essa é uma das consequências mais graves da separação entre o sagrado e o profano na sociedade Ocidental. A perda inestimável do sentido de ritual.

Para se alcançar o êxtase, no sentido de samadhi, iluminação, basta uma palavra, um koan enigmático, uma meditação com a técnica correta que só pode ser alcançada com o devido conhecimento e perseverança. O verso certo quando possui a correta sonoridade pode trazer o percebimento instantâneo para o seguidor que pretende empreender  o Caminho.  Os versos mesmo tendo sentido erótico podem estarem associados a uma intenção mística velada, já que a natureza humana é uma projeção da natureza divina e o prazer é dádiva da divindade.

A poesia sufi é a forma mais elevada da poética persa. Poesia de intenção mística com profunda temática sensual que exalta o vinho, a beleza, e a luz como dádivas divinas. Khayam com certeza é um dos maiores representantes dessa tendência onde o Islã é reconduzido ao seu trilho de doutrina esclarecida onde a ciência e a sabedoria teve seu momento de expansão reconhecido até mesmo pelos seus piores inimigos.
Diferente dos versos histéricos das freiras confinadas em conventos medievais, os poemas iluminados do Oriente possuem uma sensualidade própria, liberta das patologias da mente enclausurada e contida pelos interditos da carne.

Noite, silêncio, folhas imóveis;
imóvel o meu pensamento.
Onde estás, tu que me ofereceste a taça?
Hoje caiu a primeira pétala.

Eu sei, uma rosa não murcha
perto de quem tu agora sacias a sede;
mas sentes a falta do prazer que eu soube te dar,
e que te fez desfalecer.

Acorda... e olha como o sol em seu regresso
vai apagando as estrelas do campo da noite;
do mesmo modo ele vai desvanecer
as grandes luzes da soberba torre do Sultão.

Omar Khayyam

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