Segundo Claude Levy Strauss a mulher e a comida são temas
conexos nas culturas de caçadores coletores. Em yoruba o mesmo termo designa o matrimonio, a comida, a posse, o
mérito, o ganho, a aquisição. Casar-se e comer possui o mesmo sentido. No
principio as uniões incestuosas eram comuns e foi necessário se estabelecer os
diferentes clãs para criar novas oportunidades de cruzamentos. A descendência
era matrilinear, como ainda ocorre em algumas culturas de origem tribal. Em
surdina o poder da mulher se firma desde o inicio dos tempos em todas as
culturas, enquanto prenha, garante a continuidade da estirpe, ama de leite dos
primeiros passos do homem, coletora de alimentos e divina deusa da fertilidade,
enquanto madona, mulher respeitável, que não teme os poderosos e afirma como formadora
sua opinião nas assembleias da tribo decidindo conflitos e tréguas. Antes do
início das hostilidades elas podiam envergonhar os covardes, insultar os
indecisos e participar das danças de incitamento ao combate.
Em oposição à figura volúvel de Helena que se entrega a
Páris e abandona seu marido gerando o infortúnio para Tróia, parte da temática
da Ilíada, na Odisséia, a outra importante obra atribuída à Homero, a personagem feminina Penélope, a esposa constante e fiel de Odisseu espera seu
retorno da guerra enquanto os jovens pretendentes dilapidam a fortuna da família
em banquetes e pressionam a esposa do seu rei, que acreditam morto, para que
escolha um novo marido, ao que ela secretamente se recusa a fazer e por anos
utilizando de mil artimanhas para ganhar tempo até o retorno do amado marido.
As expressões do feminino estão presentes nos conceitos mais
caros dos antigos. As musas, a Vitória, a Justiça, a Coragem, a Força e a
Sabedoria e muitos outros arquétipos são representações femininas. Na poética
dos antigos, representada em suas obras magistrais, como a figura de Antígona de
Sofócles, a filha que se rebela contra as sentenças do estado e sepulta seu irmão Polinice, caído em desgraça e condenado a insepulto, pelo tirano Creonte que o considerava traidor da pátria. É condenada à morte por Creonte por questões de estado. Ela personifica a questão primordial, sua voz ainda ecoa da ribalta vinda do passado
dos tempos, numa sociedade onde a mulher normalmente não tinha voz, é o contrassenso
que grita e afirma a força eterna do feminino, garantia da imortalidade da
obra.
No principio eram as deusas a razão do culto neolítico, as
representações de matronas com seus quadris largos e seios volumosos em
pequenas estatuas que se difundiram por
toda a eurásia desde 50.000 anos atrás. Em Çatal Huyuk, na Turquia, uma antiga
cidadela construída a cerca de 10.000 anos a estatueta de uma mulher sentada num trono e ladeada por duas
panteras, em cujas cabeças ela coloca as mãos, sugere ao mesmo tempo a imagem
da mãe geradora e da senhora da natureza. Ela é também a guerreira, a inspiradora
das artes, da civilização, a criadora do céu, do tecido e da cerâmica, entre
muitos outros significados e atributos.
Os gregos explicaram também a origem do mundo com outro mito feminino: o
da deusa Gaia. Doadora da sabedoria aos homens, ela limitou o Caos infinito e
gerou seu duplo etéreo: Urano, o céu estrelado.
É Deméter, a deusa venerada pelos gregos como doadora das
sementes, da colheita, que ensinou os homens
a cultivar a terra, a atrelar os animais e a se organizar na lavoura:
arar, semear, colher e transformar os grãos em farinha e depois em pão. Da mesma forma que foi introduzido o culto à
Dioniso pelos invasores, o ritual eleusino, dedicado a deusa, foi originalmente
realizado na Trácia e se instalou no sul, em Eleusis, nas cercanias de Atenas
por volta do primeiro milênio antes de Cristo.
Foi nessa época, se acredita, composto o Hino Homérico à Demeter, que
narra o interessante mito da deusa e sua busca pela filha Perséfone sequestrada
pelo deus do mundo dos mortos Hades.
Assim também a Virgem
Maria, a compassiva mãe, psicopompa, que pede o perdão pelas almas dos
homens quando esses partem para os labirintos profundos do mundo dos
mortos. A musa diáfana e impoluta que
leva Dante pelas sendas do Paraíso diante da Luz Eterna de Deus. O espírito
feminino que pode ser uma imagem fantasmagórica da mulher idealizada, além do
pecado e que permeia todos os enredos das obras consideradas clássicas. Ela é a
alma sempre viva no imaginário da
humanidade. Sem mácula.
Em oposição a virgem sem mácula temos a visão do lado
sombrio do feminino sempre presente nos
temas da poética antiga universal As
personagens sinistras, guerreiras, insufladoras da discórdia entre os homens. Lilith,
o demônio semítico que mata os nascituros. Hécate, a feiticeira com seus
archotes esperando nas encruzilhadas os viajantes incautos transgressores de
interditos, as antigas deusas orientais que fertilizam as terras do plantio mas
exigem em troca sacrifícios humanos para garantir a abundância da safra, Diana,
a caçadora guerreira, deusa lunar que pelo horror ao parto se nega ao
matrimonio e se abriga nas florestas junto com as ninfas numa relação
homoafetiva velada. O caçador que espreita a deusa desnuda é transformado
imediatamente em cervo e devorado pelos próprios cães.
Hoje a imagem dessa mulher que rompe barreiras, figura
independente que faz o próprio destino desvela o antigo significado desses
mitemas que foram corrompidos pelas culturas machistas dos indo-arianos que
dominaram toda a Eurásia. O sentido da rebeldia feminina expõe à luz o
sentimento dessas antigas mulheres primordiais que de uma forma ou de outra
foram deificadas nas fábulas da poética antiga como reminiscências de um
passado matriarcal que os invasores das estepes não podiam permitir nem aceitar,
mas que continuava presente no imaginário humano. A decadência da dominação machista, hoje em
franca retirada para os confins do mundo asiático, permite uma abertura, uma
nova visão desses arquétipos e portanto uma poética nova para formar os cânones
da palavra com atribuição revigorada em relação ao papel do feminino na obra.
De mero coadjuvante no enredo da poética, ou simples musa relegada a adoração
do seu Fausto ela emerge como autora e personagem principal do enredo que condiciona o
desenrolar das ações e do drama.
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