terça-feira, 19 de março de 2013

A mulher e a Alma



Segundo Claude Levy Strauss a mulher e a comida são temas conexos nas culturas de caçadores coletores. Em yoruba o mesmo termo  designa o matrimonio, a comida, a posse, o mérito, o ganho, a aquisição. Casar-se e comer possui o mesmo sentido. No principio as uniões incestuosas eram comuns e foi necessário se estabelecer os diferentes clãs para criar novas oportunidades de cruzamentos. A descendência era matrilinear, como ainda ocorre em algumas culturas de origem tribal. Em surdina o poder da mulher se firma desde o inicio dos tempos em todas as culturas, enquanto prenha, garante a continuidade da estirpe, ama de leite dos primeiros passos do homem, coletora de alimentos e divina deusa da fertilidade, enquanto madona, mulher respeitável, que não teme os poderosos e afirma como formadora sua opinião nas assembleias da tribo decidindo conflitos e tréguas. Antes do início das hostilidades elas podiam envergonhar os covardes, insultar os indecisos e participar das danças de incitamento ao combate.
      
Em oposição à figura volúvel de Helena que se entrega a Páris e abandona seu marido gerando o infortúnio para Tróia, parte da temática da Ilíada, na Odisséia, a outra importante obra atribuída à Homero, a personagem feminina Penélope, a esposa constante e fiel de Odisseu espera seu retorno da guerra enquanto os jovens pretendentes dilapidam a fortuna da família em banquetes e pressionam a esposa do seu rei, que acreditam morto, para que escolha um novo marido, ao que ela secretamente se recusa a fazer e por anos utilizando de mil artimanhas para ganhar tempo até o retorno do amado marido.

As expressões do feminino estão presentes nos conceitos mais caros dos antigos. As musas, a Vitória, a Justiça, a Coragem, a Força e a Sabedoria e muitos outros arquétipos são representações femininas. Na poética dos antigos, representada em suas obras magistrais, como a figura de Antígona de Sofócles, a filha que se rebela contra as sentenças do estado  e sepulta seu irmão Polinice, caído em desgraça e condenado a insepulto, pelo tirano Creonte que o considerava traidor da pátria. É condenada à morte por Creonte por questões de estado. Ela personifica a questão primordial, sua voz ainda ecoa da ribalta vinda do passado dos tempos, numa sociedade onde a mulher normalmente não tinha voz, é o contrassenso que grita e afirma a força eterna do feminino, garantia da imortalidade da obra.

No principio eram as deusas a razão do culto neolítico, as representações de matronas com seus quadris largos e seios volumosos em pequenas estatuas que se difundiram  por toda a eurásia desde 50.000 anos atrás. Em Çatal Huyuk, na Turquia, uma antiga cidadela construída a cerca de 10.000 anos a estatueta de uma  mulher sentada num trono e ladeada por duas panteras, em cujas cabeças ela coloca as mãos, sugere ao mesmo tempo a imagem da mãe geradora e da senhora da natureza. Ela é também a guerreira, a inspiradora das artes, da civilização, a criadora do céu, do tecido e da cerâmica, entre muitos outros significados e atributos.  Os gregos explicaram também a origem do mundo com outro mito feminino: o da deusa Gaia. Doadora da sabedoria aos homens, ela limitou o Caos infinito e gerou seu duplo etéreo: Urano, o céu estrelado.  

É Deméter, a deusa venerada pelos gregos como doadora das sementes, da colheita, que ensinou os homens  a cultivar a terra, a atrelar os animais e a se organizar na lavoura: arar, semear, colher e transformar os grãos em farinha e depois em pão.  Da mesma forma que foi introduzido o culto à Dioniso pelos invasores, o ritual eleusino, dedicado a deusa, foi originalmente realizado na Trácia e se instalou no sul, em Eleusis, nas cercanias de Atenas por volta do primeiro milênio antes de Cristo.  Foi nessa época, se acredita, composto o Hino Homérico à Demeter, que narra o interessante mito da deusa e sua busca pela filha Perséfone sequestrada pelo deus do mundo dos mortos  Hades.

Assim também a Virgem  Maria, a compassiva mãe, psicopompa, que pede o perdão pelas almas dos homens quando esses partem para os labirintos profundos do mundo dos mortos.  A musa diáfana e impoluta que leva Dante pelas sendas do Paraíso diante da Luz Eterna de Deus. O espírito feminino que pode ser uma imagem fantasmagórica da mulher idealizada, além do pecado e que permeia todos os enredos das obras consideradas clássicas. Ela é a  alma sempre viva no imaginário da humanidade. Sem mácula.

Em oposição a virgem sem mácula temos a visão do lado sombrio do feminino  sempre presente nos temas da poética antiga universal  As personagens sinistras, guerreiras, insufladoras da discórdia entre os homens. Lilith, o demônio semítico que mata os nascituros. Hécate, a feiticeira com seus archotes esperando nas encruzilhadas os viajantes incautos transgressores de interditos, as antigas deusas orientais que fertilizam as terras do plantio mas exigem em troca sacrifícios humanos para garantir a abundância da safra, Diana, a caçadora guerreira, deusa lunar que pelo horror ao parto se nega ao matrimonio e se abriga nas florestas junto com as ninfas numa relação homoafetiva velada. O caçador que espreita a deusa desnuda é transformado imediatamente em cervo e devorado pelos próprios cães.

Hoje a imagem dessa mulher que rompe barreiras, figura independente que faz o próprio destino desvela o antigo significado desses mitemas que foram corrompidos pelas culturas machistas dos indo-arianos que dominaram toda a Eurásia. O sentido da rebeldia feminina expõe à luz o sentimento dessas antigas mulheres primordiais que de uma forma ou de outra foram deificadas nas fábulas da poética antiga como reminiscências de um passado matriarcal que os invasores das estepes não podiam permitir nem aceitar, mas que continuava presente no imaginário humano. A decadência da dominação machista, hoje em franca retirada para os confins do mundo asiático, permite uma abertura, uma nova visão desses arquétipos e portanto uma poética nova para formar os cânones da palavra com atribuição revigorada em relação ao papel do feminino na obra. De mero coadjuvante no enredo da poética, ou simples musa relegada a adoração do seu Fausto ela emerge como autora e personagem principal do enredo que condiciona o desenrolar das ações e do drama.       

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