sexta-feira, 22 de março de 2013

PABLO NERUDA





OS INIMIGOS

Aqui eles trouxeram os fuzis repletos
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.

Então, no lugar
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem do sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.
Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.

Para os que salpicaram a pátria de sangue,
peço castigo.
Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.

Para o traidor que ascendeu sobre o crime,
peço castigo.

Para o que deu a ordem de agonia,
peço castigo.

Para os que defenderam este crime,
peço castigo.

Não quero que me dêem a mão
empapada de nosso sangue.
Peço castigo.

Não vos quero como embaixadores,
tampouco em casa tranquilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.
Quero castigo.



Não me sinto mudar
Não me sinto mudar. 

Ontem eu era o mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo
mental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.

Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.

As roseiras florescem, as mulheres partem
cada dia há mais meninas para cada conselho
para cada cansaço para cada bondade.

Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas
os vermes raivosos desfazem a dor,
todos os homens pedem de mais para amanhã
eu não peço nada nem um pouco de mundo.

Mas num dia amargo, num dia distante
sentirei a raiva de não estender as mãos
de não erguer as asas da renovação.

Será talvez um pouco mais de melancolia
mas na certeza da crise tardia
farei uma primavera para o meu coração.

- Pablo Neruda, in "Cadernos de Temuco", [tradução de Albano Martins].





Eternidad
Escribo para una tierra recién secada, recién
fresca de flores, de polen, de argamasa,
escribo para unos cráteres cuyas cúpulas de tiza
repiten su redondo vacío junto a la nieve pura,
dictamino de pronto para lo que apenas
lleva el vapor ferruginoso recién salido del abismo,
hablo para las praderas que no conocen apellido
sino la pequeña campanilla del liquen o el estambre quemado
o la áspera espesura donde la yegua arde.

De dónde vengo, sino de estas primerizas, azules
materias que se enredan o se encrespan o se destituyen
o se esparcen a gritos o se derraman sonámbulas,
o se trepan y forman el baluarte del árbol,
o se sumen y amarran la célula del cobre
o saltan a la rama de los ríos, o sucumben
en la raza enterrada del carbón o relucen
en las tinieblas verdes de la uva?

En las noches duermo como los ríos, recorriendo
algo incesantemente, rompiendo, adelantando
la noche natatoria, levantando las horas
hacia la luz, palpando las secretas
imágenes que la cal ha desterrado, subiendo por el bronce
hasta las cataratas recién disciplinadas, y toco
en un camino de ríos lo que no distribuye
sino la rosa nunca nacida, el hemisferio ahogado.
La tierra es una catedral de párpados pálidos,
eternamente unidos y agregados en un
vendaval de segmentos, en una sal de bóvedas,
en un color final de otoño perdonado.

No habéis, no habéis rosado jamás en el camino
lo que la estalactita desnuda determina,
la fiesta entre las lámparas glaciales,
el alto frío de las hojas negras,
no habéis entrado conmigo en las fibras
que la tierra ha escondido,
no habéis vuelto a subir después de muertos
grano a grano las gradas de la arena
hasta que las coronas del rocío
de nuevo cubran una rosa abierta,
no podéis existir sin ir muriendo
con el vestuario usado de la dicha.
Pero yo soy el nimbo metálico, la argolla
encadenada a espacios, a nubes, a terrenos
que roca despertadas y enmudecidas aguas,
y vuelve a desafiar la intemperie infinita.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Safo





A Átis - Safo

 Não minto: eu me queria morta.
Deixava-me, desfeita em lágrimas:
"Mas, ah, que triste a nossa sina!
Eu vou contra a vontade, juro,
Safo". "Seja feliz", eu disse,
"E lembre-se de quanto a quero.
Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe
Os nossos momentos de amor.
Quantas grinaldas, no seu colo,
— Rosas, violetas, açafrão —
Trançamos juntas! Multiflores
Colares atei para o tenro
Pescoço de Átis; os perfumes
Nos cabelos, os óleos raros
Da sua pele em minha pele!
[...]
Cama macia, o amor nascia
De sua beleza, e eu matava
A sua sede" [...}
Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só, aqui deitada, desejante.
— Adolescência, adolescência,
Você se vai, aonde vai?
— Não volto mais para você,
Para você volto mais não.


Safo (613 a.C - 570 a.C) Poeta grega, nasceu ou em Eressos ou em Mitilene na ilha de Lesbos, no mar Egeu. A tentativa de realçar suas relações como proibidas com outras mulheres se origina no medievo quando seus versos foram tratados como pecaminosos pelos católicos. Ao que consta teve relações com homens e com mulheres, mas as suas preferências românticas iam para estas últimas. As referências morais da Idade Média não se ajustam a liberdade de seus poemas escritos no período Clássico e que permanecem com absoluta atualidade até hoje. Da sua poesia sobreviveram 650 versos, e só um poema completo. Safo liderava um grupo de mulheres que adoravam Afrodite, a deusa do amor.


A uma mulher amada

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.



Para Anactória

A mais bela coisa deste mundo
para alguns são soldados a marchar,
para outros uma frota; para mim
é a minha bem-querida.
Fácil é dá-lo a compreender a todos:
Helena, a sem igual em formosura,
achou que o destruidor da honra de Tróia
era o melhor dos homens,
e assim não se deteve a cogitar
em sua filha nem nos pais queridos:
o Amor a seduziu e longe a fez
ceder o coração.
Dobrar mulher não custa, se ela pensa
por alto no que é próximo e querido.
Oh não me esqueças, Anactória, nem
aquela que partiu:
prefiro o doce ruído de seus passos
e o brilho de seu rosto a ver os carros
e os soldados da Lídia combatendo
cobertos de armadura.



O Amor

O Amor agita meu espírito
como se fosse um vendaval
a desabar sobre os carvalhos.

               A amada

Ventura, que iguala aos deuses,
Em meu conceito, desfruta
Quem, junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir.
Quando imagino em tal gosto
ë minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir.
Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Foge-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.
Respiro a custo, e já cuido
Que se esvai a doce vida!
Arrisquemo-nos a tudo...
Contra uma angústia insofrida
tudo se deve tentar.



Um jardim

Vem de Creta até este templo
sagrado, onde há um gracioso bosque de
macieiras e altares onde arde
o incenso.
Aqui, a água fresca canta através dos ramos
das macieiras, a sombra das roseiras
cobre todo o recinto e das trémulas folhas
escorre um sono pesado.Aqui, o prado onde pastam os cavalos
já se cobriu de flores primaveris e as brisas
sopram docemente [...]
[...]
Vem, Cípris, coroada de grinaldas,
e, graciosamente, nas douradas taças
o néctar ligado aos festins
derrama



Adeus

Sinceramente, a minha vontade é morrer.
Por entre abundantes lágrimas,
afastou-se de mim e disse-me:
"Que horrível sofrimento,
Safo! É verdadeiramente contrariada que te deixo."
Eu respondi-lhe:
"Vai, não chores, e lembra-te de mim,
bem sabes como te amei.
Se não, quero ao menos
que lembres tudo o que
de belo e doce nós vivemos.
Tantas coroas compostas juntamente
de violetas, de rosas e açafrão
com que, a meu lado, te enfeitavas
e tantas grinaldas tecidas
de belas flores, entrelaçadas
à volta do teu colo tenro
e tantas ricas essências e o
régio perfume com que
tu impregnavas a minha cabeleira
e, deitada, num leito
macio, junto a mim,
o desejo aplacavas...e nem casamento nem
disputa nem sequer correntes de água
podiam destruir os laços pelos quais estamos unidas.



Augusto dos Anjos



Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e relutância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-se à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e a vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


Anjos, Augusto dos. Eu: poesias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. pág. 21.
Augusto dos Anjos!



Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!



Jorge Luís Borges




Borges, como que evocando musas, reencontra a métrica do Persa e nos conta a forma e a essência dos rubaiyat de Omar Khayyam.  

Eis o poema:

Rubaiyat

Volte em minha voz a métrica do Persa
A recordar que o tempo é a diversa
Trama de sonhos ávidos que somos
E que o secreto Sonhador dispersa.

Volte a afirmar que é a cinza, o fogo,
A carne, o pó, o rio, a fugitiva
Imagem de tua vida e de minha vida
Que lentamente se nos vai de logo.

Volte a afirmar o árduo monumento
Que constrói a soberba é como o vento
Que passa, e que à luz inconcebível
De Quem perdura, um século é momento.

Volte a advertir que o rouxinol de ouro
Canta unicamente no sonoro
Ápice da noite e que os astros
Avaros não prodigam seu tesouro.

Volte a lua ao verso que tua mão
Escreve como torna no temporão
Azul a teu jardim. A mesma lua
Desse jardim há de te buscar em vão.

 Sejam sob a lua das ternas
Tardes teu humilde exemplo as cisternas,
Em cujo espelho de água se repetem
Umas poucas imagens eternas.

Que a lua do Persa e os incertos
Ouros dos crepúsculos desertos
Voltem. Hoje é ontem. És os outros
Cujo rosto é o pó. És os mortos.


terça-feira, 19 de março de 2013

Bertold Brecht




"Não se regozigem com a derrota dele, homens
Mesmo que o mundo tenha se erguido para deter o bastardo
a cadela que o pariu está no cio novamente"

Bertold Brecht






Ah! Desgraçados!
Um irmão é maltratado e vocês olham para o outro lado?
Grita de dor o ferido e vocês ficam calados?
A violência faz a ronda e escolhe a vítima,
e vocês dizem: "a mim ela está poupando, vamos fingir que não estamos olhando".
Mas que cidade?
Que espécie de gente é essa?
Quando campeia em uma cidade a injustiça,
é necessário que alguem se levante.
Não havendo quem se levante,
é preferível que em um grande incêndio,
toda cidade desapareça,
antes que a noite desça.
Bertolt Brecht

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tanta vezes?
Em que casas Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que
a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Cesares?
A decantada Bizancio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu alem dele?

Cada pagina uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

(Bertold Brecht)

Jenny dos Piratas - Na peça "A Ópera dos Três Vinténs" é cantada por Polly , a filha de Peachum, que vai se casar com o gangster Macheath, o Mac Navalha. Polly está num beco sem saída e só pode ansiar por um tipo de salvação como aquele que aparece na canção:

Tradução: Pablo Capistrano

Meus senhores, hoje me veem limpando copos.
E fazendo camas para os outros.
Agradecendo prontamente os trocados que recebo.
E os senhores veem meus trapos nesse hotel vagabundo.
E os senhores não sabem com quem estão falando.
Mas, qualquer noite dessas, haverá gritos no porto.
E se perguntará: que gritaria é essa?
E os senhores me verão sorrindo junto aos meus copos.
E perguntarão: do que ela está rindo?
E um navio de oito velas.
Com cinquenta canhões.
Estará ancorado no cais.
E dirão: vá! Limpe teus copos, fofinha!
E me lançarão uns centavos.
E as camas serão arrumadas, e os centavos embolsados.
(Camas que não serão usadas nessa noite).
E os senhores ainda não tem ideia de quem eu sou.
Mas, qualquer noite dessas, haverá estrondos no porto.
E se perguntará: que barulho é esse? / E me verão atrás da janela, observando.
E dirão: por que esse sorriso malicioso?
E o navio de oito velas.
Com cinquenta canhões.
Bombardeará a cidade.
Meus senhores, provavelmente suas risadas cessarão.
Quando os muros começarem a cair.
E quando a cidade for posta rente ao chão.
Restando apenas esse hotel vagabundo,
poupado de qualquer arranhão.
E se perguntará: quem, de tão especial, mora aqui?
E essa noite, se ouvirá gritaria ao redor do hotel.
E se perguntará: por que esse hotel foi poupado?
E me verão sair, de manhã, pela porta.
E perguntarão: ela morava ai?
E o navio de oito velas.
Com cinquenta canhões.
Tremulará suas bandeiras nos mastros.
E desembarcarão as centenas.
E pisarão nas sombras.
E arrastarão cada pessoa que encontrarem,
atrás de cada porta que vasculharem.
E os acorrentarão e os trarão até mim.
E perguntarão: a quem devemos matar?
E nesse meio dia, haverá calmaria no porto.
Enquanto se pergunta: quem tem que morrer?
E então me ouvirão dizer:
Todos!
E quando as cabeças começarem a rolar eu direi:
Eita!
E o navio de oito velas.
Com cinquenta canhões.
Desaparecerá comigo no horizonte.



O personagem Macheath, na peça, está disposto a subir de vida, passando de um marginal que controla o mercado negro a banqueiro. E junto aos seus capangas ele questiona: "O que é um torpedo, em comparação com uma ação ao portador ? O que é assaltar um banco, em comparação com fundar um banco ? Sua argumentação é retomada na "Canção de Fundação do Banco Nacional de Depósitos":

Para fundar um banco

precisa-se de capital inicial
Se a grana porém faltar
onde obtê-la sem roubar ?


Brecht sempre expressou uma visão crítica da sociedade em que vivia e uma recusa à  submissão em um país que se preparava para ser dominado pelo totalitarismo nazista. Em sua peça "Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas", uma sátira contra o nazismo, uma personagem entoa a canção na qual diz:

Já tivemos muitos amos:
amos-tigres, amos-hienas,
nobres e porcos - dezenas! -
e a todos alimentamos.
Seus coturnos? Quem viu um
viu todos...Não comparamos,
Não queremos novos amos:
Não queremos amo algum! 

A atualidade de sua crítica do mundo, mergulhado hoje em profunda crise econômica do sistema financeiro Europeu  torna sua obra imortalmente universal. A coerência de sua temática social que sofreu críticas recentes por àqueles que viam no socialismo uma ideologia moribunda no leste europeu, ainda faz tremer as bases de uma visão eurocêntrica capitalista, que através da exploração da mão de obra em suas zonas de influência e alhures, com o fim do colonialismo, se veem como potências de segunda ordem em franca decadência em busca de novas aventuras militares. Os antigos satélites da ex-URSS estão hoje mergulhados no ostracismo de uma falsa liberdade onde não existe nem pão, nem trabalho. Só agora suas populações iludidas parecem despertar para uma crise sem precedentes onde só os poderosos capitalistas sobrevivem.

Aos que vierem depois de nós
Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

 (Tradução de Manuel Bandeira)

- O poema acima foi extraído do caderno "Mais!", jornal Folha de São Paulo - São Paulo (SP), edição de 07/07/2002, tendo sido traduzido pelo grande poeta brasileiro Manuel Bandeira./Fonte: Releituras





Louvor ao estudo

Estuda o elementar: para aqueles
cuja a hora chegou não é nunca demasiado tarde.
Estuda o abc. Não basta, mas estuda. Não te canses.
Começa. Tens de saber tudo.
Estás chamado a ser um dirigente.

Freqüente a escola, desamparado!
Persegue o saber, morto de frio!
Empunha o livro, faminto! É uma arma!
Estás chamado a ser um dirigente.

Não temas perguntar, companheiro!
Não te deixes convencer!
Compreende tudo por ti mesmo.

O que não sabes por ti,
não o sabes.
Confere a conta. Tens de pagá-la.
Aponta com teu dedo a cada coisa
e pergunta: "Que é isto? e como é?"
Estás chamado a ser um dirigente.


___

Breve Biografia
Bertolt Brecht nasceu em Augsburg, Alemanha, em 1898. Em 1917 inicia o curso de medicina em Munique, mas logo é convocado pelo exército, indo trabalhar como enfermeiro em um hospital militar. Aquele que iria se tornar uma das mais importantes figuras do teatro do século XX, começa a escrever seus primeiros poemas e cedo se rebela contra os "falsos padrões" da arte e da vida burguesa, corroídas pela Primeira Guerra. Tal atitude se reflete já na sua primeira peça, o drama expressionista "Baal", de 1918. Colabora com os diretores Max Reinhardt e Erwin Piscator. Recebe, no fim dos anos 20, instruções marxistas do filósofo Karl Korsch. Em 1928, faz com Kurt Weill a "Ópera dos Três Vinténs". Com a ascensão de Hitler, deixa o país em 1933, e exila-se em países como a Dinamarca e Estados Unidos da América, onde sobrevive à custa de trabalhos para Hollywood. Faz da crítica ao nazismo e à guerra tema de obras como "Mãe coragem e seus filhos" (1939). Vítima da patrulha macartista, parte em 1947 para a Suíça — onde redige o "Pequeno Organon", suma de sua teoria teatral. Volta à Alemanha em 1948, onde funda, no ano seguinte, a companhia Berliner Ensemble. Morre em Berlim, em 1956.




1) Bibliografia - A poesia de Brecht e a História - Autor: Leandro Konder - Jorge Zahar Ed. - 1996

Os Rubaiyat de Omar Khayyam





versão em português de Afredo Braga 

1

Nunca murmurei uma prece,

nem escondi os meus pecados.

Ignoro se existe uma Justiça, ou Misericórdia;

mas não desespero: sou um homem sincero.

2

O que vale mais? Meditar numa taverna,

ou prosternado na mesquita implorar o Céu?

Não sei se temos um Senhor,

nem que destino me reservou.

3

Olha com indulgência aqueles que se embriagam;

os teus defeitos não são menores.

Se queres paz e serenidade, lembra-te

da dor de tantos outros, e te julgarás feliz.




Que o teu saber não humilhe o teu próximo.

Cuidado, não deixes que a ira te domine.

Se esperas a paz, sorri ao destino que te fere;

não firas ninguém.

5

Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.

Apanha um grande copo cheio de vinho,

senta-te ao luar, e pensa:

Talvez amanhã a lua me procure em vão.

6

Não procures muitos amigos, nem busques prolongar

a simpatia que alguém te inspirou;

antes de apertares a mão que te estendem,

considera se um dia ela não se erguerá contra ti.

7

Alcorão, o livro supremo, pode ser lido às vezes,

mas ninguém se deleita sempre em suas páginas.

No copo de vinho está gravado um texto de adorável

sabedoria que a boca lê, a cada vez com mais delícia.

8

Há muito tempo, esta ânfora foi um amante,

como eu: sofria com a indiferença de uma mulher;

a asa curva no gargalo é o braço que enlaçava

os ombros lisos da bem amada.

9

Que pobre o coração que não sabe amar

e não conhece o delírio da paixão.

Se não amas, que sol pode te aquecer,

ou que lua te consolar? 


10 

Hoje os meus anos reflorescem.

Quero o vinho que me dá calor.

Dizes que é amargo? Vinho!

Que seja amargo, como a vida.

11

É inútil a tua aflição;

nada podes sobre o teu destino.

Se és prudente, toma o que tens à mão.

Amanhã... que sabes do amanhã?

12

Além da Terra, pelo Infinito,

procurei, em vão, o Céu e o Inferno.

Depois uma voz me disse:

Céu e Inferno estão em ti.

13

Não vamos falar agora, dá-me vinho. Nesta noite

a tua boca é a mais linda rosa, e me basta.

Dá-me vinho, e que seja vermelho como os teus lábios;

o meu remorso será leve como os teus cabelos.

14

Tenho igual desprezo por libertinos ou devotos.

Quem irá dizer se terão o Céu ou o Inferno?

Conheces alguém que visitou esses lugares?

E ainda queres encher o mar com pedras? 


15 

Na sombra azulada do jardim

o ar da primavera renova as rosas

e ilumina os meigos olhos da minha amada.

Ontem, amanhã... é tão grande o prazer agora.

16

Bebo, mas não sei quem te fez, ó grande ânfora;

podes conter três medidas de vinho, mas um dia

a Morte te quebrará. Numa outra hora perguntarei

como foste criada, se foste feliz, ou por que serás pó.

17

Como o rio, ou como o vento,

vão passando os dias.

Há dois dias que me são indiferentes:

O que foi ontem, o que virá amanhã.

18

Não me lembro do dia em que nasci;

não sei em que dia morrerei.

Vem, minha doce amiga, vamos beber deste copo

e esquecer a nossa incurável ignorância.

19

Khayyam, enquanto erguias a tenda da Sabedoria,

caíste na fogueira da dor; agora és cinzas.

O Anjo Azrail cortou as cordas da tua tenda

e a Morte vendeu-a por uma ninharia.

20

É inútil te afligires por teres pecado;

também é inútil a tua contrição:

além da morte estará o Nada,

ou a Misericórdia.

21 

Cristãos, judeus, muçulmanos, rezam,

com medo do inferno; mas se realmente soubessem

dos segredos de Deus, não iam plantar

as mesquinhas sementes do medo e da súplica.

22

Na estação das rosas procuro um campo florido

e sento-me à sombra com uma linda mulher;

não cuido da minha salvação: tomo o vinho

que ela me oferece; senão, o que valeria eu?

23

O vasto mundo: um grão de areia no espaço.

A ciência dos homens: palavras. Os povos,

os animais, as flores dos sete climas: sombras.

O profundo resultado da tua meditação: nada.

24

Eu estava com sono e a Sabedoria me disse:

A rosa da felicidade não se abre para quem dorme;

por quê te entregares a esse irmão da morte?

Bebe vinho; tens tantos séculos para dormir.

25

Admito que já resolveste o enigma da Criação;

e o teu destino? Aceito que desvendaste a Verdade;

e o teu destino? Está bem, viveste cem anos felizes

e ainda tens muitos para viver; e o teu destino?


26 

Ninguém desvendará o Mistério. Nunca saberemos

o que se oculta por trás das aparências.

As nossas moradas são provisórias, menos aquela última.

Não vamos falar, toma o teu vinho.

27

Olha, um dia a alma deixará o teu corpo

e ficarás por trás do véu, entre o Universo

e o desconhecido. Enquanto não chega a hora,

procura ser feliz. Para onde irás depois?

28

Os sábios mais ilustres caminharam nas trevas da ignorância,

e eram os luminares do seu tempo.

O que fizeram? Balbuciaram algumas frases confusas,

e depois adormeceram, cansados.

29

A vida é um jogo monótono que dá dois prêmios:

A Dor e a Morte.

Feliz a criança que expirou ao nascer;

mais feliz quem não veio ao mundo.

30

Na feira que atravessas não procures amigos

ou abrigo seguro. Aceita a dor que não tem remédio

e sorri ao infortúnio; não esperes que te sorriam:

Seria tempo perdido.

31

O mundo gira, distraído dos cálculos dos sábios.

Renuncia à vaidade de contar os astros

e lembra-te: vais morrer, não sonharás mais,

e os vermes da terra cuidarão da tua carcaça.

32

Aquele que criou o Universo e as estrelas

exagerou quando inventou a dor.

Lábios vermelhos como rubis, cabelos perfumados,

quantos sois no mundo?

33

Velho mundo sob o passo do cavalo branco e negro

dos dias e das noites, és o palácio triste onde mil Djenchids

sonharam com a glória e mil Bahrams com o amor,

e a cada manhã acordavam chorando.

34

Sono sobre a terra, sono debaixo da terra.

Sobre a terra, sob a terra: homens deitados.

Nada em toda a parte. Deserto.

Homens chegam, outros partem.

35

Enquanto o rouxinol lhe entoava um hino,

murchou a bela rosa por causa do vento sul.

Lamentaremos por ela ou por nós?

Quando morrermos, outra rosa desabrochará.

36

Se não tiveste a recompensa que merecias,

não te importes, não esperes nada;

já estava tudo nas páginas daquele livro

que o vento da eternidade vai virando ao acaso.

37

Quando me falam das delícias que na outra vida

os eleitos irão gozar, respondo:

Confio no vinho, não em promessas;

o som dos tambores só é belo ao longe.


38 

Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade,

a divina estação das rosas, da vida eterna,

dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta

o instante fugidio que é a tua vida.

39

Bebe o teu vinho. Vais dormir muito tempo

debaixo da terra, sem amigos, sem mulheres.

Confio-te um grande segredo:

As tulipas murchas não reflorescem mais.

40

Baixinho a argila dizia

ao oleiro que a torneava:

Já fui como tu, não te esqueças,

não me maltrates.

41

Oleiro, vai com cuidado, trata bem a argila

com que Adão foi conformado.

Vejo no torno que moves a mão de Feridun,

o coração de Khosru... o que fizeste?

42

A tulipa rubra nasce no campo que foi regado

pelo sangue de um altivo rei.

A violeta brota do sinal de beleza que palpitava

na face de uma doce adolescente.


43 

Há tanto tempo giram os astros no espaço;

há tanto tempo se revezam os dias e as noites.

Anda de leve na terra, talvez aonde vais pisar

ainda estejam os olhos meigos de um adolescente.

44

As raízes do narciso que se inclina suave,

bebem a vida nos lábios mortos de uma mulher.

Pisa leve a relva macia, ela nasce das cinzas

de rostos tão belos quanto as tulipas.

45

O oleiro ia modelando as alças e os contornos

de uma ânfora. O barro que ele conformava

era feito de crânios de sultões

e mãos de mendigos.

46

O bem e o mal se entrelaçam no mundo.

Não agradeças ao Céu

pela sorte que te coube, nem o acuses:

Ele é indiferente.

47

Se em teu coração cultivaste a rosa do amor,

quer tenhas procurado ouvir a voz de Deus,

ou esgotado a taça do prazer,

a tua vida não foi em vão. [


48 

Vai com prudência, viajante.

A estrada é perigosa, a adaga do destino

é acerada. Não colhas as amêndoas doces,

são venenosas.

49

Um jardim florido, uma bela mulher, e vinho.

Eis o meu prazer e a minha amargura,

o meu paraíso e o meu inferno.

Mas quem sabe o que é Céu e o que é Inferno?

50

Com a tua face como a rosa, com o teu rosto belo,

como o de um ídolo chinês, não sabes

o que o teu olhar faz do rei da Babilônia?

Um bispo do xadrez, que foge da rainha.

51

A vida passa. O que resta de Bagdad e Balk?

A aragem mais leve é fatal à rosa já desabrochada.

Bebe o vinho, e contempla a lua:

lembra-te das civilizações que ela já viu morrer.

52

Ouve o que a Sabedoria diz todos os dias:

A vida é breve.

Não te esqueças, não és como certas plantas

que rebrotam depois de cortadas.

53

Mestres e sábios morreram

sem se entenderem sobre o Ser e o Não Ser.

Nós, ignorantes, vamos apanhar as tenras uvas;

que os grandes homens se regalem com as passas.

54

O meu nascimento não aumentou o Universo,

nem a minha morte lhe fanará o esplendor.

Ninguém me dirá por quê vim ao mundo,

ou porquê um dia irei embora.

55

Iremos nos perder na estrada do amor,

e o destino nos pisará, indiferente.

Vem, menina, taça encantada, dá-me de beber

em teus lábios, antes que eu me torne pó.

56

Só de nome conhecemos a felicidade.

O nosso melhor amigo é o vinho;

afaga a única que te é fiel: a ânfora,

cheia do sangue das vinhas.

57

Não te inquietes, a vida é como um suspiro.

As cinzas de Djenchid e de Kai-Kobad volteiam

na poeira vermelha que tolda o ar.

O Universo é uma miragem, a vida é um sonho.

58

Senta-te e bebe, felicidade que Mahmud não teve.

Escuta os sussuros dos amantes, são os Salmos de Davi.

Não te importes com o passado, não sondes o futuro,

não percas este instante: Eis a paz.

59

Pessoas presunçosas e obtusas inventaram

diferenças entre o corpo e a alma.

Sei apenas que o vinho apaga as angústias

que nos atormentam, e nos devolve a calma.

60

Que enigma os astros que andam pelo espaço.

Agarra-te à corda da sabedoria, Khayyam.

Presta atenção à vertigem

que faz cair perto de ti os teus companheiros.

61

Não temo a morte. Prefiro esse ato inelutável

ao outro que me foi imposto no dia em que nasci.

O que é a vida, afinal? Um bem que me confiaram

sem me consultarem e que entregarei com indiferença.

62

Estou velho, e a paixão que me inspiraste

vai me levar ao túmulo: não cesso de encher a taça.

Esta paixão tem razão contra mim:

o tempo estraga a minha bela rosa.

63

Podes me perseguir, miragem de outra ventura,

podes modular a tua voz, mas só escuto aquela

que já me encantou. Dizem-me: Deus te perdoará.

Recuso o perdão que não pedi.

64

Um pouco de pão, um pouco de água,

a sombra de uma árvore, e o teu olhar;

nenhum sultão é mais feliz do que eu,

e nenhum mendigo é mais triste.

65

Tantos carinhos, tantas delícias,

tanta ternura no começo do nosso amor.

Mas agora o teu prazer

é dilacerar o meu coração. Por quê?

66

Vinho, bálsamo para o meu coração doente,

vinho da cor das rosas, vinho perfumado

para calar a minha dor. Vinho, e o teu alaúde

de cordas de seda, minha amada.

67

Falam de um Criador...

e Ele deu forma às criaturas para destruí-las?

Por que são feias? Por que são belas?

Quem é o responsável? Não compreendo nada.

68

Todos pretendem andar pelo Caminho do Saber.

Uns o procuram, outros afirmam tê-lo encontrado.

Um dia uma grande voz dirá: Não há caminho,

nem atalho.

69

Brinda ao resplendor da aurora, e dedica

o vinho vermelho desta taça, em forma de chama,

ou de tulipa, ao sorriso meigo de algum adolescente.

Bebe, e esquece que o punho da dor te prostrará.

70

Vinho! Que palpite em minhas veias,

que inunde a minha cabeça. Silêncio!

Tudo é mentira. Copos! Depressa!

Envelheci muito.

71

Do meu túmulo virá um tal perfume de vinho

que embriagará os que por lá passarem,

e uma tal serenidade vai pairar ali,

que os amantes não quererão se afastar.

72

No turbilhão da vida são felizes aqueles

que presumindo saber tudo não se instruem.

Fui buscar os segredos do Universo e voltei

invejando os cegos que encontrei pelo caminho.

73

Alguns amigos me dizem: Não bebas mais Khayyam.

Respondo: Quando bebo, ouço o que me dizem

as rosas, as tulipas, os jasmins;

ouço até o que não me diz a minha amada.

74

Em que pensas? Nos que já morreram? São pó no pó.

Pensas nas virtudes que tiveram? Sim? Deixa-me sorrir.

Toma este copo, vamos beber; ouve sem inquietação

o vasto Silêncio do Universo.

75

Não faças planos para amanhã.

Sabes se poderás terminar a frase que vais dizer?

Talvez amanhã estejamos tão longe deste albergue,

como os outros que já se foram há sete mil anos.

76

Conquistador de corações, belo moço

de olhos brilhantes e altivo semblante,

senta-te e apanha um copo. Eu te contemplo,

e penso na ânfora que serás um dia.

77

Há muito tempo a minha mocidade se foi.

Primavera da minha vida, passaste como passaram

as outras primaveras: sem que eu percebesse.

Partiste, como se vão os melhores dias.

78

Sente todos os perfumes, todas as cores,

todas as músicas; ama todas as mulheres.

Lembra-te que a vida é breve,

e que breve voltarás ao pó.

79

Não terás paz na terra, e é tolice acreditar

no repouso eterno. Depois da morte

teu sono será breve: renascerás na erva

que será pisada, ou na flor que murchará.

80

O que realmente possuo?

O que restará de mim depois da morte?

É tão breve a vida, uma fogueira:

Chamas, e depois, cinzas.

81

Convicção e dúvida, erro e verdade:

são palavras, como bolhas de ar;

brilhantes, ou baças: vazias,

como a existência dos homens.

82

Escuta, isto ninguém te contou:

Quando a primeira alba clareou o mundo,

Adão já era uma criatura dolorosa,

que pedia a noite, ansiava a morte.

83

Não pedi para nascer. Recebo, sem espanto ou ira,

o que a vida me entrega. Um dia hei de partir;

não me importa saber qual o motivo

da minha misteriosa passagem pelo mundo.

84

Colhe os frutos que a vida te oferece

e escolhe as taças maiores;

não creias que Deus vá fazer as contas

dos teus vícios e das tuas virtudes.

85

Os meus cabelos estão brancos,

tenho setenta anos de idade.

Agarro agora a felicidade; amanhã,

talvez não me restem forças.

86

Nunca procurei saber onde encontrar

o manto da mentira e do ardil,

mas sempre andei à procura

dos melhores vinhos.

87

Alguns sábios da Grécia sabiam propor enigmas?

É absoluta a minha indiferença por tanta inteligência.

Dá-me vinho, minha amiga; deixa-me ouvir o alaúde,

olha como lembra o vento que passa, como nós.

88

É o mês do Ramadã. Amanhã o sol

vai iluminar uma cidade silenciosa;

os vinhos dormirão em suas urnas

e as mulheres à sombra dos bosques.

89

Somos os peões deste jogo do xadrez

que Deus trama. Ele nos move, lança-nos

uns contra os outros, nos desloca, e depois

nos recolhe, um a um, à Caixa do Nada.

90

A abóbada celeste se parece a uma taça emborcada;

sob ela, em vão, erram os sábios.

Ama a tua amada como a ânfora ama o copo;

olha, boca a boca, ela lhe dá o seu próprio sangue.

91

O amor que não consome, não é amor;

a brasa tem o mesmo calor de uma fogueira?

Aquele que ama, pelas noites e dias,

vai se consumindo no prazer e na dor.

92

Não aprendeste nada com os sábios,

mas o roçar dos lábios de uma mulher em teu peito

pode te revelar a felicidade.

Tens os dias contados. Toma vinho.

93

O vinho dá-te o calor que não tens;

suaviza o jugo do passado e te alivia

das brumas do futuro; inunda-te de luz

e te liberta desta prisão.

94

Nunca rezei nas mesquitas, mas antes

ainda sentia uma tênue esperança.

Agora gosto de me sentar lá;

aquela sombra é propícia ao sono.

95

Na terra cheia de cores alguém caminha:

não é muçulmano, não é infiel, nem pobre, nem rico;

não acredita na Verdade e não afirma nada.

Quem é esse, intrépido e triste?

96

Um dia pedi a um velho sábio

que me falasse sobre os que já se foram.

Ele disse:

Não voltarão. Eis o que sei.

97

Olha, a rosa estremece ao sopro do vento;

um pássaro entoa um hino; uma nuvem paira.

Bebe, e esquece que o vento vai ressecar a rosa,

levar a nuvem refrescante e o canto do rouxinol.

98

Onde estão os nossos amigos? Já morreram?

Ainda os ouço na taverna...

já se foram? ou estarão embriagados

de tanto terem vivido?

99

Quando eu não mais viver, não haverá mais rosas,

nem lábios vermelhos, nem vinhos perfumados;

não haverá auroras, nem amores, nem penas:

o Universo terá acabado, pois ele é o meu pensamento.

100

Podes sondar a profunda noite que nos envolve

e ir pelo mistério adentro. Em vão.

Adão, Eva, como deve ter sido amargo aquele beijo

que nos gerou tão desesperançados.

101

Cansado de perguntar aos sábios, perguntei à taça:

para onde irei depois da morte?

Ela me respondeu baixinho: Bebe em minha boca,

bebe longamente: não voltarás.

102

Eu estava numa olaria e mil ânforas murmuravam.

Então uma delas disse: Silêncio, deixem

que esse homem se lembre dos oleiros

e dos compradores de ânforas que já fomos.

103

Nesta noite caem pétalas das estrelas,

mas o meu jardim ainda não está coberto delas.

Assim como o céu derrama flores sobre a terra,

verto em minha taça o vinho da cor das rosas.

104

Queres saber como será o amanhã? Tolice.

Confia, ou o fado justificará os teus receios.

Não te apegues, não questiones livros nem pessoas,

nosso destino é insondável.

105

A aurora encheu de rosas a taça do céu,

e o último rouxinol canta o seu meigo canto;

e ainda há quem pense em honras e glórias...

Vem, menina... que sedosos são os teus cabelos...

106

Vai um cavaleiro pelas sombras do entardecer.

Aonde irá, por serras e por vales?

e onde estará deitado amanhã?

Sobre a terra, ou debaixo dela?

107

O vinho é da cor das rosas;

talvez não seja o sangue das uvas, mas das rosas;

e o azul desta taça talvez seja o céu cristalizado;

e não seria a noite a pálpebra do dia?

108

Mais outra aurora. Como em todas as manhãs,

deparo a beleza do mundo, e não posso agradecer:

há tantas rosas, tantos lábios. Vem minha amiga,

pousa o teu alaúde, os pássaros estão cantando.

109

Homem ingênuo, pensas que és sábio

e estás sufocado entre os dois infinitos

do passado e do futuro. Não podes sair.

Bebe, e esquece a tua impotência.

110

O que farei hoje? Ir à taverna? Ler um livro?

Um pássaro passa. Aonde irá? Já não o vejo.

Embriaguez de uma ave no céu azul e morno;

melancolia de um homem que ainda se lembra.

111

Mais vinho, minha amiga,

as tuas faces ainda não estão rosadas.

Um pouco mais de tristeza, Khayyam,

tua amada vai te olhar, vai sorrir.

112

Não tragam lâmpadas, os meus amigos adormeceram;

estão imóveis, pálidos, como ficarão no túmulo.

Não tragam as lâmpadas,

os mortos não precisam delas.

113

Estudei muito e tive mestres eminentes

e me orgulhava dos meus progressos e triunfos.

Agora lembro-me do sábio que eu era: era como a água

que toma a forma do vaso, como a fumaça ao vento.

114

Guardo as minhas tristezas como a ave

se esconde para morrer. Dá-me vinho, minha amiga,

e escuta os meus gracejos: Vinho, rosas, lábios,

e a tua indiferença pela minha dor.

115

Despe-te dessas roupas que te envaidecem

e que não trazias ao nascer;

os teus conhecidos não te cumprimentarão mais,


mas em teu peito cantarão os Serafins do céu.

116

Aconteceu o que eu já esperava: Ela me deixou.

Quando eu a tinha era tão fácil a renúncia;

junto dela, como estavas só, Khayyam;

ela se foi para te refugiares nela.

117

Ah, Senhor, destruíste a minha alegria,

ergueste uma muralha entre mim e a minha amada,

pisaste a minha bela seara; vou morrer,

e Tu, cambaleias, embriagado.

118

Silêncio, dor da minha alma,

deixa-me procurar um remédio.

É preciso viver; os mortos não se lembram

e eu quero rever a minha amada.

119

É grande a tua dor? Não lhe dês atenção.

Lembra-te dos outros que sofrem inutilmente.

Procura uma linda mulher; mas cuidado, evita amá-la,

e ela, que não te ame. 


120 

Rosas, taças, lábios vermelhos:

brinquedos que o Tempo estraga;

estudo, meditação, renúncia:

cinzas que o Tempo espalha. 





1 A tradução de Edward Fitzgerald é contestada por Omar Ali-Shah em Rubaiyyat, El poema original del místico Sufi, Ediciones Dervish International, Buenos Aires, 19
89.