quarta-feira, 27 de maio de 2020

Charles Bukowski





A Genialidade da Multidão


Charles Bukowski


Há suficiente traição, ódio, violência, absurdo no ser humano comum
Para abastecer qualquer exército a qualquer momento.

E os melhores assassinos são aqueles que Pregam Contra o assassinato.
E os melhores no ódio são aqueles que pregam amor.
E os melhores na guerra - enfim - são aqueles que pregam paz.

Aqueles que pregam Deus, precisam de Deus.
Aqueles que pregam paz, não tem paz.
Aqueles que pregam amor, não tem amor.
CUIDADO COM OS PREGADORES
Cuidado com os conhecedores.

Cuidado com aqueles que estão sempre lendo livros.
Cuidado com aqueles que ou detestam a pobreza ou orgulham-se dela.
CUIDADO com aqueles rápidos em elogiar
Pois eles precisam de louvor em retorno

CUIDADO com aqueles rápidos em censurar:
Eles temem o que desconhecem.
Cuidado com aqueles que procuram constantemente multidões;
Eles não são nada sozinhos.

CUIDADO.
O Homem Vulgar. A Mulher Vulgar.
CUIDADO com o amor deles.

Seu amor é vulgar, busca vulgaridade
Mas há força em seu ódio
Há força suficiente em seu ódio para matá-lo,
para matar qualquer um.

Não esperando solidão
Não entendendo solidão
Eles tentarão destruir
Qualquer coisa que difira deles mesmos

Não sendo capazes de criar arte
Eles não entenderão a arte

Considerarão seu fracasso como criadores
Apenas como falha do mundo

Não sendo capazes de amar plenamente
Eles ACREDITARÃO que seu amor é incompleto
ENTÃO TE ODIARÃO

E seu ódio será perfeito
Como um diamante brilhante
Como uma faca
Como uma montanha
Como um tigre
COMO cicuta

Sua mais refinada
ARTE.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Mao Tse-Tung - Poemas




Recusar a Mao Tse-Tung, por considerações de caráter político, o lugar de grande poeta que por direito lhe cabe, seria tão desonesto e errôneo como, por motivos idênticos, embora de caráter oposto, recusar a Ezra Pound a posição indiscutível de destaque na literatura Ocidental deste século. 

Mao Tse-Tung acreditava-se mais como um revolucionário e sentia-se de certa forma contrariado com sua obra poética, cujas características especiais de estilo sugerem os escritos  dentro dos moldes tradicionais e com linguagem clássica. Foram essas as razões talvez das suas hesitações em divulgá-los em um momento que a China buscava uma direção nova, e necessitava romper com velhas tradições de uma época de ouro do passado idealizada pela cultura tradicional, para construir uma nova era a partir do rompimento de raízes milenares e do desenvolvimento de novas estruturas sociais e culturais em direção ao comunismo.

Foi em 1945, na revista Ta Kung Pao, de Chungking, que apareceu o primeiro poema de Mao devido a indiscrição de seu amigo Liu Ya-Tzu. Em Agosto de 1945, Mao viaja pela primeira vez de avião, de Yenan para ChungKing, a fim de conferenciar com Chiang Kay-shek sobre a possibilidade de um governo de coalizão. Parece que o poema Neve foi escrito durante a viagem e oferecido ao poeta Liu Ya-Tzu, que não o via desde 1927, conforme um velho costume chinês de homens letrados trocarem poemas. Veremos o mesmo acontecer em 1949 e 1950 entre os dois. Mas em 1945 Liu entregou o poema ao editor do Ta Kung Pao. Mao contou a Robert Payne em 1946: "Dei-o ao meu amigo pedindo-lhe que não mostrasse a ninguém, mas ele publicou-o sem minha autorização". Em 1946 eram já conhecidos três poemas de sua autoria: Neve, Monte Liup'an e A Grande Marcha.

Pareceu para os que ansiavam em conhecer seus poemas que Mao considerava-os menores e uma atividade para passar o tempo por pura diversão. Não queria misturar sua poesia com a vida política. Nesta altura já havia estabelecido seu programa de "arte para as massas". Como poderia ele aparecer como autor de poemas em forma tradicional e linguagem clássica ? Por isso quando Payne, que tinha pedido seus poemas antes, ao partir ainda quis vê-los: "Não há poemas ?" - insistiu. A resposta foi: "Não por algum tempo". Só doze anos depois, em Fevereiro de 1957, permitiu, com relutância, a publicação de mais 16 poemas, na revista Shih-k'an (Poesia), dirigida por Tsang K'a-chia. A missiva que acompanhava os poemas dizia: "Recebi sua amável carta faz algum tempo e lamento ter demorado tanto em responder. Como desejava, copiei em folhas separadas todos os poemas em estilo antigo que posso recordar, tal como os oito que me enviou. São dezoito ao todo. Aqui vão estes poemas, que ponho a sua disposição". 

A tradução do chinês para o português de Manoel Seabra, de 1974, é uma verdadeiras raridade. Um trabalho hérculeo que exigiu como é o caso uma conversão do sentido poético, do ideograma para a escrita fonética mantendo seu ritmo original e fluente. Essa edição portuguesa é um daqueles poucos exemplos que encontramos na divulgação da cultura chinesa sem ter sido vertida da lingua inglesa ou do alemão, nem sempre com um resultado de tradução feliz. Seguem alguns dos Poemas:

CH'ANGSHA (1925)

Segundo a melodia Shen Yüan Ch'un

Sózinho no frio do Outono
onde o rio Hsiang corre para o Norte
contornando Chützuchou
As montanhas são escarlate
das folhas de árvore murchas
e no rio de jade transparente
cem barcos lutam na corrente
Águias voando contra o céu
e nas águas fundas peixe silencioso:
todos livres sob o céu gelado
Sozinho na desolada imensidão,
pergunto à vasta terra:
"Quem governa o destino do homem?"
Recordo tantos amigos reunidos
nesses meses e anos agitados.
Éramos todos companheiros
cheios de nobreza e juventude
e como escolares inquietos
acusávamos o mundo e os homens.
Apontávamos o rio e as montanhas
e proclamávamos nossas ideias,
tratando como lixo os grandes senhores.
Ainda recordais bem
como, no rio, batíamos os remos
contra a corrente que não deixava avançar?

A TORRE DO GROU AMARELO (1927) Primavera

segundo a melodia P'u Sa Man

Vastos vastos nove rios atravessam a China
e um simples caminho de ferro de Norte a Sul
Envoltas em chuva e em neblina azul
a Tartaruga e a Serpente dominam o rio

Quem sabe para onde voou o Grou Amarelo?
Ficou aqui apenas a pousada dos peregrinos.
Ergo a minha taça às águas tumultuosas,
o coração pulsando com as marés.

NEVE (1936) Fevereiro

segundo a melodia Shen Yüan Ch'un

Paisagem gloriosamente ventosa:
centenas de léguas cobertas de gelo
e outras tantas varridas pela neve.
De ambos os lados da Grande Muralha
a mesma desolada vastidão.
Por todo o rio Amarelo
as grandes ondas tudo inundam.
As cordilheiras dançam como serpentes de prata
e as colinas galopam como elefantes
querendo desafiar as altitudes celestes.
Só um dia claro
vê toda a terra vestida de vermelho
como uma visão mágica e anormal.
Tão grande é a beleza desses rios e montanhas
que inúmeros heróis
têm lutado pelos seus encantos.
Pouca era a cultura literária
dos imperadores Shih Huang e Wu Ti
e não eram muito românticos
os imperadores T'ai Tsung e Ts'ai Tsu.
E esse orgulhoso Gengis Cão
só sabia retesar o arco
e disparar contra as águias do céu
Mas todos pertencem ao passado
e homens de verdadeira sabedoria
há-de mostrarmos a nossa época. 

  Fonte: Poemas de Mao Tse-tung - Tradução direta do chinês por Manuel Seabra -Editorial Futura - 2º Ed. - Lisboa - 1974     

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Gregório de Matos




EPÍLOGOS (Gregorio de Matos: 1636 - 1696)

Que falta nesta cidade?................Verdade
Que mais por sua desonra?...........Honra
Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio?..........Negócio
Quem causa tal perdição?.............Ambição
E o maior desta loucura?...............Usura.
Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são os seus doces objetos?....Pretos
Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
Quem faz os círios mesquinhos?...Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas
Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.
E que justiça a resguarda?.............Bastarda
É grátis distribuída?......................Vendida
Que tem, que a todos assusta?.......Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
Que vai pela clerezia?..................Simonia
E pelos membros da Igreja?..........Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.
Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.
E nos frades há manqueiras?.........Freiras
Em que ocupam os serões?............Sermões
Não se ocupam em disputas?.........Putas.
Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
O açúcar já se acabou?..................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?...............Subiu
Logo já convalesceu?.....................Morreu.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
A Câmara não acode?...................Não pode
Pois não tem todo o poder?...........Não quer
É que o governo a convence?........Não vence.
Que haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

RUMI - "SOU O ESCRAVO QUE LIBERTOU O AMO"


Jallaludin Rumi - (1207-1273)

"SOU O ESCRAVO QUE LIBERTOU O AMO"

Sou o escravo que libertou o amo

O Discípulo que instruiu o mestre

Sou a alma que ontem nasceu no mundo

e no mesmo instante criou esse mundo vetusto.

Sou a cera orgulhosa que fez o ferro virar aço.

Passei unguento nos olhos dos cegos

e ensinei homens de pouco entendimento.

Sou a nuvem negra que trouxe alegria

da noite de dor ao dia de festa.

Sou a terra milagrosa

que pelo fogo do amo se elevou

e tocou a mente do Céu.

Noite passada o rei não dormiu,

contente de saber que eu, o escravo, dele me lembrei

Não me culpes se sou escandaloso e lavrei justiça,

foste tu que me embriagaste.

Silencio, que o espelho se desgasta;

quando soprei sobre ele,

protestou contra mim.

Alguém bateu a porta da Bem-Amada,

e uma Voz lá dentro perguntou:

"Quem está aí ?"

E ele respondeu - Sou eu.

A Voz então disse:

"Esta casa não conterá nós dois"

E a porta continuou fechada

Então o Amante foi para o deserto e na solidão jejuou e orou.

Retornou depois de um ano e bateu novamente à porta.

E de novo a voz perguntou:

"Quem é?"

E o Amante respondeu:

"És tu mesma!"

E a porta lhe foi aberta. 





Fonte: A Mística do Amor - Jallaludin Rumi - Ed. Pradense - 2012
Tradução: André Luis Soares Vargas

terça-feira, 9 de abril de 2013

HO CHI MINH




"Se o tigre parar, o elefante o transpassará com suas possantes presas. Mas o tigre jamais parará e o elefante morrerá de exaustão e hemorragia" (Ho Chi Mihn - 1946)

Há setenta anos atrás, um certo marinheiro vietnamita de nome Ba, recuperando-se de uma tuberculose (que  o acompanharia durante décadas) esteve durante seis meses no Rio de Janeiro. Morou em uma pensão em Santa Tereza. Durante o V Congresso do Cominten, em Moscou Nguyen Ai Quoc dividiu seu quarto com um comunista brasileiro Rodolfo Coutinho. E contava ao dirigente do PCB sobre sua estada no Brasil: confessava-se impressionado com a pobreza, principalmente na região dos mangues no Rio. E segundo se conta teria falado em um português-espanhol atravessado das suas boas lembranças com "las putanas del mangue". Esse lado boêmio do grande líder nunca constou de suas biografias oficiais. 

Foi como Nguyen Ai Quoc que Ho construiu sua reputação de grande agente da 3° Internacional. Como jornalista Ai Quoc se tornou conhecido dentro da esquerda. Seus artigos eram demolidores, com fina ironia e humor considerado brilhante. Esse homem segundo seus perseguidores iria se tornar mais tarde Ho Chi Mihn, o libertador do Vietnã que com sua humildade destruiu dois exércitos imperiais.

"A raiz faz a árvore sólida
O palácio de todas as vitórias
se constrói sobre um povo inteiro"

No palácio de Hanói, então construído sobre uma vitória fortuita do Viet Minh, Ho não resistiria muito tempo. Quando a 20 de dezembro de 1946, os franceses conquistam Hanoi e invadem o palácio presidencial, Ho Chi Mihn, doente e inconsolável, havia sido evacuado para a selva, com seu Estado Maior. De lá, em seu habitat natural, o tigre vietnamita comandaria a resistência.

Ainda no período anterior permanecerá algum tempo preso na China, e viu o período de reclusão como um estágio para alcançar seu objetivo:

"Pessoas que saem da prisão podem construir seu país
O infortúnio é um teste na fidelidade da pessoa
Aqueles que protestam contra a injustiça são pessoas de verdadeiro mérito
Quando as portas da prisão se abrem o verdadeiro dragão voará"

No Vietnã a poesia sempre foi uma maneira simples e fácil de comunicar-se com o povo. Bem mais fácil entender uma poesia do que palavras de ordem incompreensíveis para o sensível povo vietnamita. Esse é seu gesto, um canto particular, marca registrada daqueles que desde o começo dos tempos iluminam, em "Ho aquele que ilumina", suas poesias são estruturadas assim:

"Cantar a natureza era o prazer dos antigos
Flores e neve, luz e vento, montanhas e rios,
É preciso armar de aço os versos do nosso tempo
E o poeta também deve saber combater"

Suas poesias escritas com a leveza do clássico estilo chinês Tang, a partir de uma visão crítica Ocidental, rasa de percepção parecem pobres e ingênuas:

"Se levo fortemente atados os meus braços
ouço os pássaros, sinto o perfume das flores
Quem me pode impedir essa felicidade
Que me faz menos só e a marcha menos triste"

No seus poemas utiliza a linguagem dos camponeses e frequentemente usa o arroz como metáfora de um sistema de produção colonial opressor. Frágil como apenas mais um grão abatido sob o pilão, na sua luta pela liberdade lembra a bandeira do Viet Minh:

"Uma noite sem dormir, Duas noites, Três noites,
Viro na cama, inquieto, e o sono não vem
Quarta noite, Quinta noite. Meus olhos não se fecharam
Senão quando comecei a sonhar com a estrela de cinco pontas"

Em meio ao desterro, preso na China, mostrava que ainda estava vivo, lúcido e arrasador, em seu mordaz humor. Como nessa poesia anotada no diário: Sobre a delegação norte americana que visitava a China:

"Somos ambos amigos da China
Vamos ambos para Chunking
Mas você segue como convidado de honra
Enquanto eu sou prisioneiro, atirado sob uma escada
Frieza para com um, cordialidade para com outro:
O mundo sempre foi assim desde tempos imemoriais
as águas correm para o mar"

E na mais fina ironia de um prisioneiro:

"O Estado me alimenta com arroz; habito seus palácios
Seus guardas se revezam para me fazer companhia,
Suas montanhas e seus rios, eu os contemplo à vontade.
Com tais privilégios, um homem se sente realmente um homem!"

Seu período na prisão foi na verdade triste, solitário e penoso. O mais belo poema de seu diário escrito quatro meses após ter sido preso expressa sua índole e demonstra que em termo de prisões os chineses nada inovaram na crueza do tratamento dos inimigos como tantos outros senhores da época:

"Um dia encarcerado
mil anos lá fora
Não é vã palavra
Este provérbio antigo
Quatro meses na cela
destruíram meu corpo
mais do que dez meses de vida
Quatro meses de fome
Quatro meses de insônia
sem mudar de roupa
sem poder me lavar
Abandonou´me um dente
cabelos branquearam-se
negro, magro, faminto
vestido de sarna e de feridas
Mas paciente sou,
duro, rijo
sem recuar um palmo
Materialmente miserável,
o moral, firme".

Foram treze meses de fome, de insônia, de sarnas e de moral firme nas mãos do Kuomintang. Em 16 de setembro de 1943, além de livre Ho estava de novo na liderança de um grupo nacionalista patrocinado pelos chineses. 

Ao estalar a guerra contra o colonialismo francês adverte: "Vocês me matarão dez homens, enquanto eu lhes matarei um. Mas mesmo com essa conta, vocês não poderão aguentar e eu vencerei...,"

Na selva com escassos recursos militares e poucos alimentos, a situação era grave para Ho e seus homens: "Os revolucionários vietnamitas receberam a influência revigorante da Revolução de Outubro e do marxismo-leninismo, como um viajante com fome e sede que, após uma longa jornada, recebe arroz e água".

Até que no final de 1949 Mao Tsé Tung assume o poder na China estabelecendo uma República Popular e então ocorre a mudança na guerra vietnamita. Armas e alimentos chegam para o Viet Minh. A intervenção norte americana em apoio ao aliado francês iniciou a temporada de chuva de Napalm. 

    
Bibliografia: Ho Chi Minh - Rafael Roubicek - Ed. Brasiliense - 1984
   

  

sexta-feira, 22 de março de 2013

PABLO NERUDA





OS INIMIGOS

Aqui eles trouxeram os fuzis repletos
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.

Então, no lugar
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem do sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.
Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.

Para os que salpicaram a pátria de sangue,
peço castigo.
Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.

Para o traidor que ascendeu sobre o crime,
peço castigo.

Para o que deu a ordem de agonia,
peço castigo.

Para os que defenderam este crime,
peço castigo.

Não quero que me dêem a mão
empapada de nosso sangue.
Peço castigo.

Não vos quero como embaixadores,
tampouco em casa tranquilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.
Quero castigo.



Não me sinto mudar
Não me sinto mudar. 

Ontem eu era o mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo
mental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.

Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.

As roseiras florescem, as mulheres partem
cada dia há mais meninas para cada conselho
para cada cansaço para cada bondade.

Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas
os vermes raivosos desfazem a dor,
todos os homens pedem de mais para amanhã
eu não peço nada nem um pouco de mundo.

Mas num dia amargo, num dia distante
sentirei a raiva de não estender as mãos
de não erguer as asas da renovação.

Será talvez um pouco mais de melancolia
mas na certeza da crise tardia
farei uma primavera para o meu coração.

- Pablo Neruda, in "Cadernos de Temuco", [tradução de Albano Martins].





Eternidad
Escribo para una tierra recién secada, recién
fresca de flores, de polen, de argamasa,
escribo para unos cráteres cuyas cúpulas de tiza
repiten su redondo vacío junto a la nieve pura,
dictamino de pronto para lo que apenas
lleva el vapor ferruginoso recién salido del abismo,
hablo para las praderas que no conocen apellido
sino la pequeña campanilla del liquen o el estambre quemado
o la áspera espesura donde la yegua arde.

De dónde vengo, sino de estas primerizas, azules
materias que se enredan o se encrespan o se destituyen
o se esparcen a gritos o se derraman sonámbulas,
o se trepan y forman el baluarte del árbol,
o se sumen y amarran la célula del cobre
o saltan a la rama de los ríos, o sucumben
en la raza enterrada del carbón o relucen
en las tinieblas verdes de la uva?

En las noches duermo como los ríos, recorriendo
algo incesantemente, rompiendo, adelantando
la noche natatoria, levantando las horas
hacia la luz, palpando las secretas
imágenes que la cal ha desterrado, subiendo por el bronce
hasta las cataratas recién disciplinadas, y toco
en un camino de ríos lo que no distribuye
sino la rosa nunca nacida, el hemisferio ahogado.
La tierra es una catedral de párpados pálidos,
eternamente unidos y agregados en un
vendaval de segmentos, en una sal de bóvedas,
en un color final de otoño perdonado.

No habéis, no habéis rosado jamás en el camino
lo que la estalactita desnuda determina,
la fiesta entre las lámparas glaciales,
el alto frío de las hojas negras,
no habéis entrado conmigo en las fibras
que la tierra ha escondido,
no habéis vuelto a subir después de muertos
grano a grano las gradas de la arena
hasta que las coronas del rocío
de nuevo cubran una rosa abierta,
no podéis existir sin ir muriendo
con el vestuario usado de la dicha.
Pero yo soy el nimbo metálico, la argolla
encadenada a espacios, a nubes, a terrenos
que roca despertadas y enmudecidas aguas,
y vuelve a desafiar la intemperie infinita.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Safo





A Átis - Safo

 Não minto: eu me queria morta.
Deixava-me, desfeita em lágrimas:
"Mas, ah, que triste a nossa sina!
Eu vou contra a vontade, juro,
Safo". "Seja feliz", eu disse,
"E lembre-se de quanto a quero.
Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe
Os nossos momentos de amor.
Quantas grinaldas, no seu colo,
— Rosas, violetas, açafrão —
Trançamos juntas! Multiflores
Colares atei para o tenro
Pescoço de Átis; os perfumes
Nos cabelos, os óleos raros
Da sua pele em minha pele!
[...]
Cama macia, o amor nascia
De sua beleza, e eu matava
A sua sede" [...}
Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só, aqui deitada, desejante.
— Adolescência, adolescência,
Você se vai, aonde vai?
— Não volto mais para você,
Para você volto mais não.


Safo (613 a.C - 570 a.C) Poeta grega, nasceu ou em Eressos ou em Mitilene na ilha de Lesbos, no mar Egeu. A tentativa de realçar suas relações como proibidas com outras mulheres se origina no medievo quando seus versos foram tratados como pecaminosos pelos católicos. Ao que consta teve relações com homens e com mulheres, mas as suas preferências românticas iam para estas últimas. As referências morais da Idade Média não se ajustam a liberdade de seus poemas escritos no período Clássico e que permanecem com absoluta atualidade até hoje. Da sua poesia sobreviveram 650 versos, e só um poema completo. Safo liderava um grupo de mulheres que adoravam Afrodite, a deusa do amor.


A uma mulher amada

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.



Para Anactória

A mais bela coisa deste mundo
para alguns são soldados a marchar,
para outros uma frota; para mim
é a minha bem-querida.
Fácil é dá-lo a compreender a todos:
Helena, a sem igual em formosura,
achou que o destruidor da honra de Tróia
era o melhor dos homens,
e assim não se deteve a cogitar
em sua filha nem nos pais queridos:
o Amor a seduziu e longe a fez
ceder o coração.
Dobrar mulher não custa, se ela pensa
por alto no que é próximo e querido.
Oh não me esqueças, Anactória, nem
aquela que partiu:
prefiro o doce ruído de seus passos
e o brilho de seu rosto a ver os carros
e os soldados da Lídia combatendo
cobertos de armadura.



O Amor

O Amor agita meu espírito
como se fosse um vendaval
a desabar sobre os carvalhos.

               A amada

Ventura, que iguala aos deuses,
Em meu conceito, desfruta
Quem, junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir.
Quando imagino em tal gosto
ë minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir.
Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Foge-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.
Respiro a custo, e já cuido
Que se esvai a doce vida!
Arrisquemo-nos a tudo...
Contra uma angústia insofrida
tudo se deve tentar.



Um jardim

Vem de Creta até este templo
sagrado, onde há um gracioso bosque de
macieiras e altares onde arde
o incenso.
Aqui, a água fresca canta através dos ramos
das macieiras, a sombra das roseiras
cobre todo o recinto e das trémulas folhas
escorre um sono pesado.Aqui, o prado onde pastam os cavalos
já se cobriu de flores primaveris e as brisas
sopram docemente [...]
[...]
Vem, Cípris, coroada de grinaldas,
e, graciosamente, nas douradas taças
o néctar ligado aos festins
derrama



Adeus

Sinceramente, a minha vontade é morrer.
Por entre abundantes lágrimas,
afastou-se de mim e disse-me:
"Que horrível sofrimento,
Safo! É verdadeiramente contrariada que te deixo."
Eu respondi-lhe:
"Vai, não chores, e lembra-te de mim,
bem sabes como te amei.
Se não, quero ao menos
que lembres tudo o que
de belo e doce nós vivemos.
Tantas coroas compostas juntamente
de violetas, de rosas e açafrão
com que, a meu lado, te enfeitavas
e tantas grinaldas tecidas
de belas flores, entrelaçadas
à volta do teu colo tenro
e tantas ricas essências e o
régio perfume com que
tu impregnavas a minha cabeleira
e, deitada, num leito
macio, junto a mim,
o desejo aplacavas...e nem casamento nem
disputa nem sequer correntes de água
podiam destruir os laços pelos quais estamos unidas.